sábado, 30 de outubro de 2010

Lembro da primeira vez em que vi o Mário Bortolotto ler esse poema. Foi em uma edição do CEP 20.000 em São Paulo, no Satyros 2. Não recordo do ano, e nem vou me esforçar em lembrar. Não importa. É algo tão marcante que me parece que foi na madrugada de ontem. Mas disso tenho certeza que não.
É um dos meus poemas favoritos. Daquelas que agente costuma ler antes de dormir, levemente embriagado, ou bem mais que levemente.



um lugar legal pra estar
(When the music stops)

Ela me disse casualmente
que havia notado a mancha de sangue na minha camisa
Disse a ela: “Não se preocupe, não é nada”
Ela respondeu: “Não tô preocupada”
Resmunguei: “É melhor assim”
Achei que podia me divertir um pouco
assistindo uma luta de boxe na TV
Tirei a camisa manchada de sangue a joguei no tanque
Ela vestiu uma micro saia e saiu pra rua
Abri uma cerveja e resolvi esperar
Os ponteiros do relógio eram guilhotinas no meu pescoço
Quando ela voltou, não falei nada
Fiquei no escuro vendo ela se mexer
deixando cair a saia
no caminho pro banheiro
Deixou a luz acesa e ouvi o barulho
não vou usar de eufemismos nesse momento
pra dizer o que ela estava fazendo
somos um casal com tempo de serviço
nossa indiferença mútua provava isso
meu enorme peso no sofá atestava isso
Ela acendeu um cigarro no escuro da sala
e a chama do isqueiro fez com que ela me notasse
“é mais difícil do que você imagina”, ela disse
e seu desprezo me acertou como um blefe de pôquer
Ainda ficou um tempo olhando pra mim
antes de vender o orgulho e perguntar
“O que era a mancha na sua camisa?”
“Já disse. Não e nada. Não precisa se preocupar”
Ela soltou um foda-se e foi pro quarto,
deitou e ficou fumando olhando o teto
Levantei e fui até o banheiro
Cambaleei e tive que me apoiar na porta
Abri a armário e peguei o mercúrio-cromo
ou você não sabia que a maioria das histórias de amor
termina com alguém limpando as feridas?

Mário Bortolotto

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